Caminho de alcatrão de espinhos, o que Deus colocou debaixo dos meus pés desnudos, sem se importar com cicatrizes, pois conhece-me e sabe da minha natureza, sabe que se os sinto num momento, os já não sinto no momento seguinte... fenómeno incongruente que me atemoriza e eu mesma custo em perceber... não sei se é sinal de que me preparo para uma curva seguinte ainda mais cheia de cruéis e dolorosos espinhos, se é sinal de que a minha alma se fortalece e por isso se liberta da dor... mas os espinhos continuam a cravar-se-me na carne, sem dó nem piedade, ainda que numa realidade holográfica, imaginada, ensanguentam-se-me os pés, as mãos, o rosto, o coração... um sangue que, contudo, jorra no próprio momento, sugando-me da alma as cores, as forças, a razão e as razões... o caminho obscurece e grito que nada se vê... o caminho são trevas pegadas, umas a seguir das outras e o abismo parece inevitável... o abismo está lá mesmo ao fundo e, naquele momento, por breves, excassos mas infinitamente longos instantes, instantes que se prolongam por uma eternidade em cujos intervalos posso apenas questionar-me se alguma vez em algum momento algo fará sentido... em cujos intervalos retorna a ponta de esperança necessária para que da memória e do corpo se apaguem as cicatrizes... e tudo recomece, sem dó nem piedade...
No momento, no breve eterno instante sente-se a carne do peito dilacerar-se, separar-se da armação óssea que suporta o meu corpo cansado, exausto, porém, sempre capaz de suportar mais um golpe... quem dera cair morta, jazer para sempre numa poça de sangue, dum sangue verde de esperança, daquela que me envenenou com o veneno de ser obrigada a prosseguir, mesmo sem o desejar... mas eu desejava-o e os golpes disferidos por mim mesma e pelas ilusões que de forma quase voluntária criava sucediam-se, no cruel instante em que me distraía um pouco, em que as feridas ardiam, talvez, um pouco menos, o mundo, o universo inteiro, desabava em cima do meu pobre corpo, débil de forças e pleno de desespero, loucura, desânimo... em cima da minha pobre alma... sádica sábia que sempre teve todas as respostas mas ainda assim deixou que duvidasse delas...
Quero as cicatrizes. Quero que fiquem e jamais me libertem a memória... não as quero barrando-me o caminho, não as quero obstruindo... quero apenas a sabedoria que me trouxeram... e que a memória de cada relâmpago holográfico disferido sobre o meu indefeso ser permaneça e me revele as palavras sábias que me teriam libertado a mim de tamanha dor... para que um dia eu as possa proferir a alguma alma que encontre nos meus caminhares, para que eu lhas possa gritar, gritar aos setes ventos, libertando assim o meu irmão de dor semelhante à que o meu destino me guardava... que as minhas palavras encontrem a sua sabedoria e o libertem...